Diante da leitura da peça sofocliana “Antígona”, é impossível não notar alguns questionamentos presentes no núcleo da narrativa. Contudo, àqueles que não se contentam apenas em ler a obra, mas se importam também em tentar ajusta-la ou leva-la, em algum grau, para sua vida, não bastará apenas perceber o debate, mas certamente encaixar a narrativa em suas experiências íntimas e perceber quantas vezes foi Antígona e quantas vezes foi Ismene. Nesta publicação, focarei exclusivamente em um desses questionamentos, a saber, um confronto entre o que é justo e o que é legal.

Nesse contexto, é interessante observar que o mérito do confronto entre Antígona e Creonte, assim como suas filosofias de vida, por assim dizer, podem ser vistos como um tema de constante debate entre alguns filósofos do direito, pois de um lado existem os juspositivistas (aos quais, com intuito de classificação, mais vale a formalidade que o conteúdo das leis), por outro lado temos os não positivistas, ou seja, os adeptos de todas as outras vertentes que não acreditam na formalidade como maior critério para uma lei (mais vale o conteúdo do que a formalidade, em questão de classificação da norma). Porém, pouco vale dissertar sobre uma questão sem impô-la alguma ordem que torne o que é dito compreensível. Por esse motivo, encerro essa breve introdução e passo a tratar de forma mais precisa sobre o tema desse texto.

Dessa maneira, em prol de tornar esse texto compreensível ao maior número de pessoas, farei uma rápida introdução aos pensamentos presentes na obra. Representando o primeiro lado, Creonte, o rei de Tebas, impõe um decreto impedindo que seja enterrado dignamente um homem que guerreou para derrubar o rei anterior de Tebas (a propósito, este rei anterior e este rebelde eram irmãos e mataram-se, um ao outro, simultaneamente, compelidos pelo destino) e a pena de desobediência era a morte; o segundo lado é representado por Antígona, irmã dos dois mortos (um enterrado com honrarias e outro deixado para os cães e aves) que se viu em situação conflitante com a lei, isto é, ela poderia obedecer o decreto ou poderia tentar salvar a alma e o resto de dignidade de um dos seus irmãos. Isto posto, torna-se evidente que há um conflito entre a moral de Antígona e a lei de Tebas. Mas Antígona toma a posição moral e correta perante os deuses, ela desobedece ao decreto sacrílego de Creonte e faz um ritual de enterro simples para seu irmão, a fim de honrá-lo; já o rei toma posições e assume posturas guiado pela cegueira do poder, pela arrogância e por preocupações políticas travestidas de convicção moral (coisa que é reconhecida pelo próprio monarca no fim da peça).

Não obstante, adentrando os portões da filosofia jurídica, é conveniente usar essa situação para refletir acerca das leis naturais em confronto com as leis positivas, pois muitas vezes nossa razão nos faz entender algo de forma oposta ao que prescreve a lei estatal, assim como aconteceu com Antígona, e existem diversos posicionamentos interessantes sobre isso. Na visão de um positivista, por exemplo, Antígona fez jus à pena que recebeu, pois a lei do rei era repleta de validade jurídica, ou seja, era formalmente coerente, logo não haveria o que questionar sobre seu conteúdo e o dever de obediência, tendo em vista a limitação formal e o modo de sistema (conteúdo dinâmico) positivista; enquanto isso, para um jusnaturalista, Antígona agiu corretamente, pois o decreto imposto, embora formalmente válido, era injusto e a lei natural (advinda da razão humana) era favorável ao comportamento dela, isto é, numa posição jusnaturalista a lei é julgada pelo seu conteúdo, é limitada materialmente, sendo a formalidade algo de menor importância, pois o direito seria um sistema de conteúdo estático. Sobre esse tema, observe a exemplificação feita pelo exímio jurista italiano Norberto Bobbioem sua obra “Teoria do Ordenamento Jurídico”:

Por exemplo, um pai ordena ao filho que faça a lição, e o filho pergunta: “Por quê?” Se o pai responde: “Porque deves aprender”, a justificação tende à construção de um sistema estático; se responder: “Porque deves obedecer a teu pai”, a justificação tende à construção de um sistema dinâmico.

Digamos que o filho, não satisfeito, peça outra justificação. No primeiro caso perguntará: “Por que devo aprender?” A construção do sistema estático levará a uma resposta deste tipo: “Porque precisas ser aprovado”. No segundo caso perguntará: “Por que devo obedecer a meu pai?” A construção do sistema dinâmico levará a uma resposta deste tipo: “Porque teu pai foi autorizado a mandar pela lei do Estado”(Bobbio, 2014, p. 79)

Assim, diferenciado o sistema dinâmico do sistema estático, torna-se nítido que, embora tenha caído no costume de muitos assemelhar esses dois termos, lei e justiça não são necessariamente correspondentes dentro de um sistema jurídico positivo, ou seja, o certo pode entrarem confronto com o legal, o conteúdo presente no ordenamento jurídico positivo de um lugar não traz garantia de justiça ou de retidão moral. Desse modo, considerando a moral universal e um indivíduo com o senso de dever moral, mais vale obedecer a justiça do que a legalidade, como fez Antígona, pois dentro desse aspecto individual a moral é superior à lei estatal, de modo que se Antígona tivesse obedecido a lei injusta de Creonte, ela teria traído algo superior não só no seu âmbito religioso, mas também no âmbito da razão e das virtudes porque ela trocaria o certo pelo juridicamente lícito.

Por fim, concluo essa brevíssima dissertação destacando o quão ricos são os clássicos da literatura, capazes de nos remeter aos maiores dilemas da humanidade (alguns persistem até hoje, cabendo a cada um de nós superá-los individualmente), mas somente se lidos de maneira atenta, com enfoque em tirar proveito das questões que a obra pode lhe oferecer (sejam estas premeditadas pelo autor ou não), pois como bem disse o filósofo francês Jean Guitton em “O trabalho intelectual”, o valor do espírito não está majoritariamente na sua capacidade enciclopédica, isto é, ao ler uma obra clássica com intuito “curricular”, digamos assim, o leitor perde muito do real valor que ela tem, pois com essa mentalidade ele ganhará um belo portfólio, se tornará um homem mais culto, mas sem aplicação, sem bom uso, não se tornará um  homem sábio; in verbis:

O valor de um espírito não está tanto na sua ciência (há os dicionários ao alcance da mão), mas na posse de hábitos perfeitos que lhe permitam adaptar o seu saber e os seus princípios à singularidade de casos sempre novos e, inversamente, julgar o proveito que pode tirar do que lhe é oferecido pelo acaso. (Guitton, 2018, p. 48)

Texto por: Matheus Henrique Mendes de Abreu.

Referências

Bobbio, N. (2014). Teoria do Ordenamento Jurídico. São Paulo: Edipro.

Guitton, J. (2018). O Trabalho Intelectual. Kírion.

Sófocles. (2011). A Trilogia Tebana. Zahar.

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